SERÁ QUE DÁ UMA CRÔNICA?

    É raro, mas, de vez em quando acontece estar “viajando” quieto no canto de um dos elevadores aqui do prédio e entrar algum grupo conversando animadamente sobre algum assunto mais palpitante, sem que nenhum deles emita qualquer sinal de ter notado a minha presença. Entretanto, quando chegam no destino, se alguém me conhece, antes de descer, volta-se, e, da maneira mais irônica possível, não perde a oportunidade para uma “alfinetada”: isso dá uma crônica, heim?!?! Como bom cabrito não berra, dou um sorriso amarelo, engulo em seco, finjo que não é comigo e sigo em frente.Semana passada, aconteceu diferente: um companheiro de “viagem”, amigo de longa data, fez uma pergunta para mim inédita: “como nasce, cresce e se desenvolve uma crônica”? Respondi o que me veio na cabeça:” escolho um tema, penso um pouco e deixo acontecer. Vem tudo aos borbotões “”.Nada mais falso. Cada lauda dessa aqui é fruto de 5% de inspiração e 95% de transpiração. É uma idéia que chega de repente, em qualquer lugar e a qualquer hora. É registrada e, diante do micro, transformada num texto, aproveitável ou não.  Sem essa de escolha de temas. Para produzir, preciso encontrar alguma coisa que “bata” comigo. Pode ser uma notícia, uma lembrança, uma conversa. Caso contrário, vou ter que repetir alguma coisa antiga. Só quem tem a cultura do Paulo Mendes Campos, do Drumonnd, do Millôr e mais recentemente do Veríssimo, do Cony ou mesmo do Arnaldo Jabour é que possui condições de escolher temas. Confrontado aos da Clarice Lispector, meus textos não passam de infantis redações escolares. Não é falsa modéstia. É a realidade. Falta-me cultura para abordar e escolher temas aleatoriamente.    Um pouco de inteligência, razoável conhecimento de gramática; conservar como livro de cabeceira os “Cem anos de Solidão”; ter assistido aos filmes do Almodóvar e manter a assinatura da VEJA e da Folha-SP são insuficientes. A distância existente entre quem possui o dom de escrever, mas não tem cultura, para quem alia conhecimento com o dom de escrever é quilométrica. Não é só pela excelência que essas pessoas imprimem aos seus textos. As diferenças são caracterizadas por citações, comentários e observações onde deixam claro que, por beberem em todas as fontes, possuem inesgotáveis recursos culturais.Possuidor de ótimos amigos, aposto que logo vai aparecer um para me oferecer o ombro e dizer que não é bem assim. No entanto, estará enganado. Textos de incultos são como aquelas generosas mentiras que por mais esforço que a gente faça para negar ou afirmar, nunca irão se transformar numa verdade absoluta. É mais ou menos o que acontecia quando Vinicius de Morais, ao declamar o “Samba da Benção”, proclamava-se como o “branco mais preto do país”. Generosamente, Vinicius podia até considerar-se de “alma negra”, entretanto, era rico, diplomata, de pele branca; olhos claros; cabelos lisos; nariz afilado e lábios finos. Nunca sofreria qualquer tipo de discriminação. Outro exemplo é dado pelo travesti Rogéria quando diz que não adianta colocar silicone nos seios; fazer depilação; realizar operação transexual; entupir-se de hormônios; vestir-se, portar-se e querer ser igual a uma mulher. O cérebro será sempre masculino. O travesseiro não engana. É como criança. Não mente.E aí, ao mesmo tempo em que lembrava das oportunidades oferecidas pelo meu pai para me “aculturar” e que desperdicei, a cada parágrafo que ia escrevendo neste texto, passei a cultivar uma grande dúvida: será que vai dar uma crônica?  

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