Ao virarmos o novo milênio, todos nós, em preces, cânticos, versos, declarações, externávamos nossa profunda, nossa imensa esperança, nossa fé, em que estávamos entrando numa “nova era”. Assim muitos acreditavam. Nada mais de guerras, de injustiças sociais, de desrespeitos aos direitos humanos, nada mais de botas a pisar nas flores de nossos jardins, tortura nunca mais (?!), nem trabalho escravo. Corruptos e corruptores estariam todos se convertendo à probidade, incentivando caminhadas e levantando a bandeira do pundonor. A violência se divorciaria de todas as suas motivações, em todos os seus graus e descaminhos, e seria ardente defensora da paz e do amor. O preconceito estaria aos prantos fazendo juras de amor a negros, brancos, mestiços, índios, amarelos etc. O Primeiro Mundo abriria suas mãos, seus corações, seus cofres, exilaria a hipocrisia, e atenderia definitivamente a esperança no segundo, no terceiro e no quarto mundo através de princípios morais de um solidarismo autêntico, acima da eventual caridade. O governo americano assinaria, finalmente, o Protocolo de Kioto, em defesa do meio ambiente e, ardentemente, protegeria e preservaria o Tribunal Penal Internacional, inclusive para seus oficiais de maior escalão, juraria colocar a verdade acima das tradicionais mentiras e jamais voltaria a desrespeitar decisões da ONU.Os terroristas, em contra-partida, dariam um crédito de confiança às mudanças que se anunciariam e que plantariam, definitivamente, a paz no Oriente Médio, abririam mão do radicalismo de suas posições religiosas e políticas, dialogariam em vez de matar porque o mundo estaria mudando, estaria criando juízo. Enfim, estávamos entrando em um novo milênio. Parecia que se concretizariam as palavras de William Shakespeare, no ato V, de “A Tempestade”: “Ó maravilha! / Que adoráveis criaturas aqui estão! / Como é belo o gênero humano! / Ó Admirável Mundo Novo / Que possui gente assim!”Pouco tempo bastou, entretanto, para que se percebesse que Caim matar Abel já não despertava nenhuma emoção, nenhum interesse, nenhuma manchete. Mais rápido que de repente iniciou-se uma avalanche de fratricídios, com tentáculos movidos por ambições, ou desejo intenso, em que filhos começaram a seqüestrar e/ou matar pais, netos a matar avós, pais a matar filhos, em um nível assustador. Para os que ainda se assustam, claro. Alguns, crimes com requintes de barbárie. A violência parece que descumpria as promessas e se robustecia à sombra da ausência da autoridade. O comércio das drogas explodia com as esperanças do amor, da paz, da fraternidade. Corroia rapidamente os vários níveis de nossa sociedade, enlodando para sempre pilares do poder que deveriam estar a fazer cumprir leis, a impor a ordem, e oferecer segurança à mesma sociedade. O terrorismo reativava seu cacoete cruel, desumano, covarde, de uma forma até hoje não bem explicada. O revanchismo, maquiado de justiceiro, falou mais alto pela boca do poder mais forte do planeta. Retornávamos ao primarismo do “olho por olho dente por dente”. A verdade parecia ser propriedade de apenas um governo. E a mentira? Ninguém tinha coragem de acusá-la. Houve um massacre promovido por uma vingança super armada a serviço do que a única verdade dizia ser necessário. Justiça pelas próprias mãos, oficiais, claro. Oh… estávamos no novo milênio, e começando a conhecer, cada vez melhor, o Admirável Imundo Novo… Nossas preces, nossos versos, eram devidamente soterrados pelo novo poder, por uma nova lógica que leva a humilhar, torturar, e matar, e ainda matará muito mais, se reeleito. Deus era vencido pelo livre arbítrio de arbitrariedades poderosas, que, tendo a força, ameaçam e ditam regras. Logo alguns acordaram e perceberam que nada mudara, ou se mudara, fora para pior. Outros ainda fazem questão de viver no limbo da ignorância consentida, permitida, consoladora. Fecham os olhos, tapam os ouvidos, e sorriem felizes. Agem, na verdade, como os principais personagens do “Admirável Mundo Novo” previsto por Aldous Husley, ainda no ano de 1931. Talvez se empanturrem de “soma” para cada vez mais se encolherem no seu mundinho egoísta e anti-solidário, comportando-se como os seres Alfas, Betas e Deltas, “felizes” e entorpecidos de ácido lisérgico. A corrupção avança sem nenhuma cerimônia e não há grades nem cadeias que a isolem completamente do resto da sociedade, ainda não contaminada. Afinal ela já se infiltrou em níveis de um poder que hoje inspira mais desconfiança do que nos faz dormir tranqüilos. E não me venham com paliativos de que A, ou B, ainda “cumprem pena”… Quantos o fazem, mas passando o dia inteiro em casa ou na rua, em total liberdade?! Parece que as sentenças, para essas pessoas, “não são bem assim”! Oh!… Admirável Imundo Novo… E dane-se o Terceiro ou o Quarto Mundo por acreditarem em promessas de quem sempre usufruiu deles, sugou-os no passado, retira o que pode no presente, e está se lixando para o seu futuro. E ai de nós, “coitadinhos subdesenvolvidos” se esboçamos alguma reação! O mínimo que recebemos são retaliações (comerciais e outras), advertências e/ou ameaças. Os exemplos aí estão. Manda quem pode e o resto… bem, o resto obedece ou padece!Oh!… Admirável Imundo Novo… Em outro terreno, os valores foram invertidos, distorcidos, postos de cabeça para baixo. A mediocridade parece ser o prato preferido de grande parte da mídia, em detrimento do que possa oferecer cultura, educação, beleza, “mas não dá Ibope…” A audiência e o lucro têm prioridade, ainda que deseducando, destruindo valores, desencaminhando mentes, empobrecendo a cultura. Oh!… Admirável Imundo Novo… Encerro lembrando o que também escreveu Shakespeare, em Hamlet, ato III: “Oh! Não mais viver / No fétido suor de um leito sujo, / Imerso em corrupção, acariciar e amar / Na pobreza imunda…”
Inicial ADMIRÁVEL IMUNDO NOVO